Saúde & Qualidade de Vida

Artigo é tirado de contexto (mais um) para desinformar sobre as vacinas contra a Covid-19

A desinformação não é algo novo. A técnica foi usada na antiguidade romana, na Alemanha de Hitler, durante a Guerra Fria e em vários momentos cruciais da história humana, sempre com o objetivo de confundir e de amedrontar a população. Porém, durante a pandemia, em plena Era da Informação, em um tempo em que mesmo o cidadão comum tem acesso a descobertas científicas de alto nível, ela vem assumindo novos contornos.

Um deles é tirar artigos consistentes de contexto, distorcendo o que eles de fato afirmam, para criar algum impacto negativo na sociedade. Exemplo claro foi dado recentemente, quando um trabalho do biólogo Andrew Read foi viralizado na internet para dar suporte à paranoia antivacina.

Sobre galinhas

Em 2015, Read, que é professor da Universidade Estadual da Pensilvânia, nos Estados Unidos, publicou os resultados de um estudo que indicava as vacinas podem permitir a propagação de variantes mais mortais de um determinado vírus. Porém, o estudo liderado pelo cientista se voltou exclusivamente sobre a ação de um vírus específico sobre populações de galinhas, nada tendo a ver com humanos.

Contudo, de acordo com o professor, médicos relataram a ele que, nos últimos dias, os pacientes passaram a citar o artigo para justificar as decisões de não serem vacinados. “Alguns  especialistas estão até mesmo usando-o para pedir o fim das campanhas de vacinação, a fim de prevenir o tipo de evolução viral que estávamos estudando em galinhas. Recebo e-mails diariamente de pessoas preocupadas em se vacinarem ou em rejeitar a vacinação por causa de mal-entendidos sobre o artigo”, ele conta em relato publicado no site The Conversation.

Segundo o biólogo, nada no trabalho que ele publicou justifica uma postura antivacina. “Essa interpretação errônea — se fizer com que as pessoas escolham não ser vacinadas — levará à perda de vidas evitável e trágica. Um novo estudo estima que, no início de maio de 2021, as vacinas já haviam evitado cerca de 140.000 mortes (somente) nos Estados Unidos”, destaca.

Por mais de 20 anos, junto com sua equipe, Read vem estudando  a forma como as vacinas podem afetar a evolução de organismos causadores de doenças, como vírus e parasitas da malária. “Nada do que descobrimos ou mesmo do que lançamos como hipóteses justifica evitar ou suspender a vacinação. No mínimo, nosso trabalho contribui para a investigação de novos esquemas vacinais e para o desenvolvimento de vacinas de segunda e terceira geração”, ele diz.

As galinhas e a Covid-19

Porém, mesmo diante da completa falta de conexão entre os casos, o cientista não se recusa a analisar a possibilidade de seus estudos servirem como base para alguma analogia com a Covid-19. Sendo assim, Read considera válido questionar se as vacinas contra o SARS-CoV-2 podem potencializar mutações no vírus.

“No artigo de 2015 relatamos experimentos com variantes do vírus da doença de Marek, um herpesvírus que causa câncer em galinhas domésticas. Uma vacina de primeira geração contra ele passou a ser amplamente utilizada em aves no início dos anos 1970. Hoje, todas as galinhas comerciais e muitos bandos de quintal são vacinados contra a doença de Marek”, explica.

O que o estudo concluiu é que as aves não vacinadas morriam antes de transmitirem variantes mais letais a outras companheiras de criatório. Porém, como a vacina de primeira geração protegeu as galinhas da morte, as  ] infectadas com Marek viviam e, portanto, eram capazes de espalhar as cepas altamente virulentas.

“No caso da Covid-19, está se tornando cada vez mais claro que mesmo as pessoas vacinadas podem contrair e transmitir a variante delta, que é altamente transmissível. Uma vez que a transmissão viral de galinhas vacinadas é o que permitiu que mais variantes letais da Marek se propagassem, é razoável perguntar se a transmissão de Covid-19 de pessoas vacinadas poderia permitir a propagação de variantes mais letais”, destaca.

Porém, o professor observa que o caminho evolutivo que o vírus da doença de Marek percorreu — e que foi o pesquisado por sua equipe — é um dos muitos possíveis. No caso, seguiu uma trajetória que Read considera rara, em que as vacinas conduzem a evolução.

“Apenas uma minoria de vacinas humanas e animais influenciou a evolução do patógeno. Em quase todos esses casos — que incluem o vírus da hepatite B e as bactérias que causam coqueluche e pneumonia — a eficácia da vacina foi reduzida por novas variantes. Mas, em contraste com a de Marek, não havia nenhuma evidência clara de que as variantes evoluídas deixassem as pessoas mais doentes”, revela.

Cada caso é um caso

Read explica que, é de conhecimento da ciência que, na natureza, nem todos os vírus são igualmente letais. “Diferenças biológicas, como a ligação entre a gravidade da doença e a transmissão, podem causar aumento ou diminuição da letalidade. Isso significa que o futuro de um vírus não pode ser previsto simplesmente extrapolando a partir da evolução anterior de outro. O Marek e o SARS-CoV-2 são vírus muito diferentes, com vacinas muito diferentes, hospedeiros muito diferentes e mecanismos muito diferentes pelos quais adoecem e matam. É impossível saber se suas diferenças são mais importantes do que suas semelhanças”, considera.

O biólogo não descarta a ideia de hipóteses evolutivas serem consideradas. “Mas, frente ao enorme impacto benéfico das vacinas contra a Covid-19 na redução da transmissão e da gravidade da doença — mesmo contra a variante delta — a possibilidade de disseminação silenciosa de variantes mais letais entre os vacinados ainda não é um argumento contra a vacinação”, alerta.

Read acredita que, na medida em que novas variantes do coronavírus se espalharem no futuro, será vital descobrir se a vantagem evolutiva está surgindo devido à redução da gravidade da doença entre os vacinados. “Delta, por exemplo, transmite mais eficazmente de pessoas não vacinadas e vacinadas do que as variantes anteriores. Extrapolar nosso trabalho com galinhas para argumentar contra a vacinação por causa da variante delta não tem fundamento científico: a variante delta teria se tornado dominante mesmo se todos recusassem a vacinação”, diz.

Mas, tem sempre o “se”

O biólogo ressalta que, de fato, se surgissem mais variantes letais do coronavírus em um cenário com taxas de vacinação mais baixas seria mais fácil identificá-las e combatê-las, porque pessoas não vacinadas sofreriam infecções mais graves e taxas de mortalidade mais altas. “Mas esse tipo de ‘solução’ teria um custo considerável. Com efeito, as variantes seriam encontradas e eliminadas, mas permitiriam que as pessoas adoecessem, muitas das quais morreriam”, analisa Read.

O professor lembra que sacrificar galinhas não foi a solução que a indústria avícola adotou para o vírus da doença de Marek. “Em vez disso, foram desenvolvidas vacinas mais potentes. As vacinas mais recentes forneceram excelente controle da doença e nenhuma variante letal da descoberta de Marek surgiu em mais de 20 anos”, conclui.


 

Uma dica

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