Cidadania

Editorial: Apartada da comunidade e afastada da civilidade

por Carlos Alberto Rocha

Após a pausa forçada pela pandemia da Covid-19, no editorial da retomada do Comunidade Ativa, em outubro de 2021, citei um episódio envolvendo a antropóloga cultural norte-americana Margaret Mead que agora considero oportuno repetir. Conta a história que, talvez acreditando que ouviria falar em vasos de barro e em utensílios de pedra, ao perguntar sobre o primeiro indício de existência de uma civilização em determinado lugar, um aluno da pesquisadora foi surpreendido pela resposta que fazia referência a um fêmur humano quebrado e curado.

Mead explicou ao estudante que, na natureza, quando alguém sofre uma fratura daquele tipo, se não recebe os devidos cuidados, sem poder se mover para se alimentar ou para se defender de um predador, o destino mais provável será a morte. Entretanto, aquele fêmur tratado indicava que a vítima da fratura fora amparada até se tornar totalmente recuperada e apta para se cuidar por conta própria.

Ou seja, a atenção que uma pessoa tem pela outra, que é a essência da solidariedade, seria aquele primeiro sinal de civilização. Pois é a solidariedade que forma as bases de uma comunidade, do grupo de pessoas que vive e age de acordo com interesses comuns a todas elas, sustentando a civilidade.

Individualidade

Diante da atual situação que temos vivido nas grandes cidades, onde, cada vez mais, a individualidade tem ditado comportamentos e onde aquela atenção mútua vem se enfraquecendo, sou levado a também lembrar de uma passagem do livro Sapiens – Uma breve história da humanidade (L&PMG Editores, 2015) em que o autor, o historiador israelense Yuval Noah Harari, fala sobre a “invenção” do indivíduo e sobre o consequente colapso da família e da comunidade. Harari destaca que, antes da Revolução Industrial, iniciada no século 18, as pessoas viviam conectadas umas às outras, apoiadas nas estruturas comunitárias e familiares que garantiam a elas a sobrevivência.

Então, aquela marca civilizatória, que está na atenção mútua, significava que, naquele tempo, a individualidade não fazia sentido, uma vez que era o espírito de coletividade, o mesmo que rege a comunidade, o responsável pela existência da própria civilização.

Apartada

É claro que não tenho dúvidas sobre os múltiplos benefícios que vieram com a contemporaneidade, que, além dos tantos avanços tecnológicos e científicos, incluíram conquistas importantes para a sociedade, que passam pela valorização do indivíduo e pelo reconhecimento dos seus direitos. Contudo, mesmo sem a nostalgia de um tempo que não vivi, em que tantos absurdos eram cometidos, acredito firmemente que aquele sinal tão importante da existência de civilização, que era traduzido pelo apoio mútuo entre as pessoas, anda nos fazendo muita falta.

Sem ele, de fato, não vivemos em comunidade. Vivemos como indivíduos cheios de valores próprios, mas que, nas ruas, nos supermercados e nos restaurantes, se encontram destituídos daquele olhar amigável e da promessa de solidariedade tão necessária e que nos une em torno de pautas de interesse comum.

Vivendo assim, sem o ímpeto de se unir às pessoas que compartilham com ela os mesmos espaços, sem se solidarizar com as condições que afetam a todos nós, uma grande parcela da população se torna alheia aos tantos problemas da cidade, do bairro e das ruas que vão se avolumando à nossa volta. Agindo assim, apartada da comunidade, essa parcela também se afasta da civilidade.

Bom será se, um dia, esse pessoal encontrar o caminho de volta para uma vida comunitária e mais civilizada.

 

* Carlos Alberto é jornalista, editor do Comunidade Ativa e presidente da Amoran