Cidadania

Não somos ilhas. Somos continente.

por Carlos Alberto Rocha *

Nenhum homem é uma ilha, inteiro em si mesmo. Cada um é um pedaço do continente, uma parte do principal. Se um torrão é levado pelo mar, a Europa fica menor. Como se fosse um promontório. Como se fosse a sua casa ou a casa dos seus amigos. A morte de cada homem me diminui, pois estou envolvido com a humanidade. Portanto, não perguntes por quem os sinos dobram. Eles dobram por ti.

Em 1623, quando publicou estes versos no livro Devotions Upon Emergent Occasions (Devoções em ocasiões emergenciais), é provável que o pregador e poeta inglês John Donne estivesse refletindo sobre a proximidade do próprio fim, que, em 1631, o desconectaria da existência humana. Acometido pela grave doença que o levaria à morte, talvez Donne pensasse naquele individualismo “inventado” pela Idade Moderna, que já impunha ao ser humano a desconexão da humanidade, mesmo ainda estando vivo.

Afinal, a maior parte, para não dizer o todo, do que dá sentido à vida e a faz se tornar verdadeiramente viva está nas conexões que fazemos com as pessoas e com os lugares onde vivemos. Ou seja, está em transcendermos o nosso próprio círculo individual, que está restrito aos nossos instintos e ao nosso corpo e a suas necessidades.

São as conexões externas que nos fazem pertencer a grupos que assumem identidades maiores do que nós mesmos e que nos permitem associarmo-nos a  pessoas e a ambientes. É neste princípio, afinal, que estão fundamentados os conceitos de nacionalidade e de naturalidade, entre outros que nos ligam às nossas origens e aos lugares com os quais nos relacionamos. É princípio, inclusive, que possibilita a existência da sociedade e da própria civilização.

Pertencimento

Já que não podemos ser inteiros em nós mesmos, como são as ilhas, precisamos nos ligar ao que nos cerca. Assim, somando as nossas individualidades às demais individualidades que estão à nossa volta  e conectando este conjunto ao ambiente no qual ele existe, nos tornamos parte do todo ao qual pertencemos.

É por este motivo que somos torcedores deste ou daquele time e que nos identificamos com um ou com outro grupo ideológico. É esta percepção de conjunto que faz com que algumas pessoas se sintam engrandecidas por pertencerem a uma determinada organização ou por fazerem parte de uma tal família.

Quando percebemos que somos parte de algo maior, que nos envolve, assumimos uma identidade muito mais concreta do que a individual e nos sentimos mais seguros. Além disso, quando buscamos acrescentar valor ao todo, tornamo-nos também mais conscientes do significado do que somos individualmente.

É esta consciência que nos proporciona o sentido do pertencimento. Um sentido que nos conforta e que nos torna mais capazes. Individualmente somos apenas nós mesmos. Conectados, somos nós mesmos vivendo no universo amplo e dinâmico que nos cerca.

Bairrismo

Lamentavelmente, por vários motivos, grande parte das pessoas já não se sente tão conectada ao lugar onde mora, onde mantém um negócio ou onde trabalha, e muito menos às demais pessoas que com elas compartilha os espaços de vivência. Para elas, esses lugares se tornaram apenas endereços, referências geográficas, locais de abrigo ou de exercício profissional, com as quais não existem ligações afetivas maiores.

Certamente, seria muito mais proveitoso se todas as pessoas estabelecessem ligações como as que existem nas pequenas cidades do interior ou mesmo no passado das grandes metrópoles. Em vez de percebermos a nossa cidade, a nossa região, o nosso bairro e a nossa rua de maneira frívola e desinteressada, é muito mais conveniente entendermos os ambientes com os quais estamos conectados como o que são de fato: os espaços que tornam possíveis o exercício das nossas existências. Da mesma forma, é muito mais saudável e produtivo quando percebemos as pessoas que compartilham conosco os espaços especiais como sendo indivíduos que, de alguma forma, completam nossas vivências coletivas.

Se recuperarmos ou se desenvolvermos a afeição pelos lugares onde existimos e pelas pessoas que neles estão — recuperando ou desenvolvendo o bom bairrismo —, certamente aquele continente existencial ao qual Donne se refere e do qual fazemos parte se tornará muito mais real e agradável. Por outro lado, os que insistem em se isolar nas próprias ilhas — familiares, de convívio profissional ou de círculos de amigos — não só perdem a satisfação de sentirem apreço pelo lugar onde existem e pelas pessoas que, mesmo não sendo íntimas, compartilham dessa existência, como também contribuem, por omissão, para que tal lugar se torna menos feliz e saudável.

Para tornar melhor o lugar onde vivemos, antes de tudo, nos falta buscar o entendimento do continente que, juntos, formamos. Porém, esse entendimento só será possível se abandonarmos as ilhas que escolhemos viver.

* Carlos Alberto é jornalista, editor do Comunidade Ativa e presidente da Amoran