Cidadania

Lições de civismo oriental no combate à pandemia

Enquanto em grande parte do Ocidente há pessoas que se revoltam contra a necessidade do isolamento social e de manter o uso de máscara, mais disciplinados, os países asiáticos têm alcançado resultados menos graves no enfrentamento da pandemia. Os dados deixam claras as diferenças, que são imensas em algumas comparações.

Com 126 milhões de habitantes, o Japão, por exemplo, tem pouco mais de 102 mil infectados — menos de 0,1% da população — e atingiu cerca de 1,8 mil óbitos desde o início do surto de Covid-19, que chegou ao país em janeiro. A Coreia do Sul foi ainda menos impactada, com apenas 0,05% dos 51,6 milhões de habitantes contaminados, chegando a 27 mil doentes e 472 mortos.

Os Estados Unidos, por sua vez, tiveram 2,85% dos 328 milhões de habitantes infectados pelo novo coronavírus, ultrapassando a marca dos 9 milhões de doentes e 231 mil mortos. A situação é pouco diferente no Brasil, onde  2,64% da população de 210 milhões de pessoas já foi contaminada, ultrapassando a marca dos 5,5 milhões de infectados e mais de 160 mil mortes.

Segundo os analistas, o motivo de toda esta diferença estaria na maior obediência daquelas populações aos protocolos necessários ao combate ao vírus. Mas, de onde vem toda a aceitação às normas que são ditadas pelas autoridades durante o enfrentamento da pandemia?

Cultura da limpeza e máscara

Na observação do jornalista Julyan Ryall, correspondente no Japão para o jornal alemão Deutsche Welle (DW), os números naquele país estariam relativamente baixos em função da cultura de limpeza dos japoneses, que lavam as mãos constantemente, e do fato de eles manterem um nível menor de contato direto entre as pessoas — que é tão comum entre os ocidentais, que se beijam, apertam as mãos e se abraçam com maior frequência. “Da mesma forma, usar máscara em público é um hábito amplamente praticado há mais de um século”, diz.

O jornalista destaca que, já no final do século 19, quando buscava se modernizar, o Japão aumentou a preocupação com as infecções, iniciando a disseminação do uso de máscaras. Em função da pandemia da gripe espanhola, em 1918, a produção de máscaras disparou no país. “A aceitação de máscaras permaneceu desde então, principalmente na temporada de gripe de inverno e nos meses de primavera, quando muitos japoneses sofrem de alergias ao pólen causadas por faixas de árvores perenes que foram plantadas nos anos imediatamente após a Segunda Guerra Mundial para fornecer madeira para reconstruir cidades”, conta Ryall.

Sensatez, educação e medo

Em entrevista ao DW, a professora de Controle de Infecção Yoko Tswukamoto, da Universidade de Ciências da Saúde de Hokkaido, disse que o hábito de usar máscara passou a ser visto pelos japoneses como uma precaução sensata, que se tornou parte da cultura do país. “Muitos estrangeiros que visitaram o Japão antes da pandemia acreditavam que as pessoas usavam máscaras para se protegerem das pessoas ao seu redor. Isso é verdade até certo ponto. Especialmente se estiverem resfriadas ou algo semelhante, é muito mais por consideração com as pessoas que estão próximas no trem ou ônibus. Nós vemos isso como uma atitude atenciosa e educada que adotamos”, explica.

Segundo a professora Catherine Carstairs, do Departamento de História da Universidade de Guelph, no Canadá, também na China o hábito de usar máscaras vem de longa data, tendo sido iniciado no princípio dos anos 1910, quando houve um surto de pneumonia no país. “Depois que os comunistas chegaram ao poder em 1949, havia um medo intenso da guerra bacteriológica, levando muitos a usar máscaras . No século 21, a epidemia de SARS intensificou o uso de máscaras, assim como a poluição que cobriu muitas cidades chinesas. O governo chinês exortou seus cidadãos a se protegerem contra a poluição usando máscaras”, relata Catherine.

Ainda que a China esteja sob o peso de várias acusações relacionadas à pandemia, vale dizer que os números oficiais dão conta de 4,6 mil mortes e 86 mil casos de Covid-19, o que representa uma fração mínima da população de 1,4 bilhões de chineses.

Confuncionismo e Big Data

Para Byung-Chul Han, filósofo sul-coreano radicado na Alemanha, o aceitação das máscara por parte dos orientais também tem razões que remontam as tradições confuncionistas, que fizeram com que os estados asiáticos se tornassem mais autoritários do que os ocidentais. “As pessoas são menos relutantes e mais obedientes do que na Europa. Eles também confiam mais no estado. E não apenas na China, mas também na Coréia ou no Japão, a vida diária é organizada de forma muito mais estrita do que na Europa”, considera.

Han entende ainda que o a maior vigilância digital à qual os asiáticos são submetidos tem permitido controlar a epidemia de forma mais eficiente. “Pode-se dizer que na Ásia as epidemias não são combatidas apenas por virologistas e epidemiologistas, mas, acima de tudo, também cientistas da computação e especialistas em Big Data (ramo da tecnologia da informação que atua na análise de grandes volumes de dados). Uma mudança de paradigma que a Europa ainda não aprendeu. Os apologistas da vigilância digital afirmam que o Big Data salva vidas humanas”, diz.

Por meio da análise de dados de celular ou de uso de cartões de crédito e de aplicativos, por exemplo, é possível rastrear os contatos que uma pessoa contaminada pela Covid-19 tenha feito, permitindo assim que outros possíveis infectados sejam localizados e mantidos em quarentena por tempo suficiente para evitar novos contágios. Para Han, esse padrão cultural, que não é aceitável no Ocidente liberal, tem sido uma ferramenta importante no enfrentamento da epidemia. Mas não é tudo.

Civismo e responsabilidade

O filósofo entende que o civismo presente naqueles países permite uma ação conjunta da população perante a crise pandêmica. “Quando as pessoas acatam voluntariamente as regras higiênicas, não é preciso controle nem medidas forçosas, que são tão custosas em termos de pessoal e de tempo”, destaca.

Para Han, o espírito cívico impede, por exemplo, que as pessoas se reúnam em festas durante a pandemia e que confiem nas ações do poder público destinadas a conter a pandemia. “Paradoxalmente, os asiáticos, que acatam voluntariamente as normas higiênicas, têm mais liberdade (que os ocidentais). Nem no Japão nem na Coreia foi decretado o fechamento total nem o confinamento. Também os danos econômicos são muito menores que na Europa. O paradoxo da pandemia consiste em que a pessoa acaba tendo mais liberdade, se impuser voluntariamente restrições a si mesma. Quem rejeita, por exemplo, o uso de máscaras como um atentado à liberdade acaba, afinal, tendo menos liberdade”, diz.

Han explica que o individualismo é menos compreendido e tolerado nos países asiáticos,  que atribuem maior importância aos imperativos sociais. “Esse é também o motivo pelo qual eu, sendo coreano de nascimento, prefiro continuar vivendo no foco da infecção, que é Berlim, e não em Seul, por mais limpa de vírus que esteja. Mas, é preciso salientar especialmente que os elevados índices de contágio durante a pandemia não são mera consequência natural de um estilo de vida liberal, que deveríamos adotar e ponto”, ressalta.

Ao contrário, Han entende que o civismo e a responsabilidade são armas liberais eficazes contra o vírus, não sendo necessário que o liberalismo conduza a um individualismo vulgar e ao egoísmo que favorece o vírus. Lembrando que a liberal Nova Zelândia venceu o segundo round contra a pandemia, o filósofo atribui ao espírito cívico dos neozelandeses grande parte do sucesso no enfrentamento da doença naquele país. Em sentido diametralmente oposto, ele considera que o egoísmo e a divisão da população teriam levado os Estados Unidos à dramática situação em que estão vivendo os norte-americanos.

“Liberalismo e civismo não têm por que se excluírem. Civismo e responsabilidade são mais um pré-requisito essencial ao bom resultado de uma sociedade liberal. Quanto mais liberal for uma sociedade, mais civismo será necessário. A pandemia nos ensina o que é a solidariedade. A sociedade liberal necessita de um nós forte. Do contrário, se desintegra em uma coleção de egoístas. E aí o vírus deixa tudo muito fácil. Se quiséssemos falar também no Ocidente de um ‘fator X’ que a medicina não pode explicar e que dificulta a propagação do vírus, este não seria outra coisa senão o civismo, a ação conjunta e a responsabilidade com o próximo” conclui Han.